HELLO STRANGER
this is about truth,beauty,freedom;but above all things,this is about love.

16.4.10

Como se aproximar da verdade

A mítica cidade litorânea recebia uma quantidade de luz quase absurda. Dias longos, peles curtidas, olhos protegidos ou magoados de tanto que o sol brilhava. Talvez por isso, certamente por isso, o encontro foi marcado para a noite. Os três, por discrição e preferência, decidiram que a noite seria seu teto, que a visão seria deferida, ainda que tão importante, tão presente.

Eu minto. Se é pra me apresentar, é bom começar por um paradoxo. Mentia mais antes, muito, o tempo todo. Sempre achei que assim, poderia me adaptar a cada situação. E me adaptei. Mas depois de um tempo, maldição dos bons mentirosos, já não sabia mais nada de mim. Conhecia as regras, as condutas, conhecia a forma como minhas vontades brotavam, mas não mais a mim. Não sabia como elas brotariam sem o personagem, sem as regras, sem as condutas. Por curiosidade resolvi falar a verdade. Para isso tive que ir descobri-la. Aqui mesmo.

Seres absolutamente corriqueiros a primeira vista, absurdamente únicos uns para os outros. Banais em sua existência miraculosa, nesse encontro improvável, na inquietude. Banais não por si, mas porque os fatos assim o são. Se existem é porque por menor que seja a chance, num universo infinito em possibilidades, todas elas se realizam, mesmo as bem pequenas. Mesmo as únicas.

Me apresento dizendo logo que não presto: "oi, eu sou uma sacana e não presto. Também minto muito." Tudo verdade, claro, mas gera dúvida. E dúvida é um néctar para as pessoas. É a hora em que elas se reconhecem. "também sou uma fraude!" já escutei em retorno. Ai eu rio. E digo: mas eu, nesse caso ainda não fui... e estou tentando deixar de ser, pra ser sincera. Agora eu só falo a verdade, mas tão absurda que as pessoas entendam que é mentira como defesa. Mas só quando eu quero.

O ritual era simples pois era intuitivo. Simples ou impossível. Juntaram-se os três, sob um desenho astral e estação anual determinados e se conheceram. Riram de uma doutrina agnóstica, das dessemelhanças compartilhadas, do próprio prazer. Lembraram-se dos velhos cegos, codificadores da língua comum em que teceram seu encontro, dos dicionários inimigos, dos códigos partilhados. Sentiram pela primeira vez suas peles, pois que nelas estava a diferença. Nelas acabava o sonho e começava a fome.

Sou péssima em me apresentar. Ou ótima. Visto um personagem adequado e mando ver. Engraçado, inteligente, sagaz. Ou triste, seco, distante. Tanto faz. Pronto, tô apresentada.

Medo, medo pra caramba. Pele fina. Boa pra sensibilidade, ruim pra resistência. Esgarça fácil. Medo da dor? Não, mais medo do medo mesmo.

Quando o que estava dentro de cada um não mais lhe cabia, caminharam para a arena. Montaram seus tigres domesticados, os mesmos que os tinham levado até ali, despiram suas armaduras de pele e deixaram a mostra seus espelhos. Como se por baixo das peles habituais tivessem a carne recoberta por espelhos. Como se quando conseguissem olhar-se tão profundamente, ver a si no outro fosse o aprendizado. A selvageria podia pulsar em suas montarias, mas seus olhos encantaram-se com a possibilidade de formas muito mais amplas. Não só brutas, não só cultas. Vastas.

Meu talento é me cercar de pessoas talentosas. Vivo muito bem, principalmente depois de descobrir em mim algum talento, mesmo que tão torto.

A mágica é a forma mais fácil de se lidar com o mundo, o mundo é a forma mais difícil de se lidar com a mágica. O embate começa com o abandono do signos, um abraço triplo forma um caleidoscópio em que o que existe entre eles (mesmo que nada) é multiplicado infinitamente, ou senão, infinitamente o suficiente para a percepção. Um infinito secreto, particular, indivisível e inexplicável. Vive-lo ou não é a escolha.

Desisti até mesmo de mandar na minha própria vida. Descobri gente mais competente para fazê-lo. Quase uma relação de submissão, mas na verdade sou bem rebelde. Acho que eu só busquei alguém para poder desobedecer, e ter um parâmetro. Mas ganhei liberdade ao invés de ordens, e com a liberdade uma espécie de amor expansivo, leve, meio inesperado até. Como se um potro que solto voltasse lustroso, forte, mas selvagem, depois de um tempo. Daqueles que se admira e se teme. E só se teme do tanto que se admira.

Não sei como termina. Não sei mesmo. Fantasias em palavras, lutas dançadas, idas turísticas ao inferno, degustação de depravações e de sabores.

Existe um conceito hindu que associa à impureza a dor. Eu costumo sentir em certos perfumes felicidade.
(Mesmo que nunca passe de 15 minutos.)